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Álvaro Santi - Músico - Escritor - Porto Alegre/RS

Prosa

A casa e seus componentes”: Uma leitura da obra de Cecília Meireles à luz da Poética do Espaço de Gaston Bachelard

Álvaro Santi

Resumo:
O ensaio pretende aplicar, à poesia de Cecília Meireles, idéias desenvolvidas por Bachelard em “A Poética do Espaço”, verificando de que maneira a poetisa faz uso das imagens por ele estudadas. Ao mesmo tempo, o pensamento desse autor é posto à prova enquanto ferramenta válida para a abordagem da poesia lírica.

Gaston Bachelard procura justificar, na introdução à “Poética do Espaço”(1957), um de seus últimos trabalhos publicados em vida, uma mudança importante em seu método de estudo: “Em nossos trabalhos anteriores sobre a imaginação, tínhamos considerado preferível situar-nos, tão objetivamente quanto possível, diante das imagens dos quatro elementos da matéria, dos quatro princípios das cosmogonias intuitivas. Fiel a nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse método, que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-nos insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação. Por si só, a atitude ‘prudente’ não será uma recusa em obedecer à dinâmica imediata da imagem?... Só a fenomenologia — isto é, o levar-se em conta a partida da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a restituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem.”
Adverte, porém, para a limitação deste método: “Todas essas subjetividades, transubjetividades, não podem ser determinadas definitivamente. A imagem poética é essencialmente variacional. Ela não é, como o conceito, constitutiva.” E, a seguir, para a dificuldade da tarefa: “Sem dúvida, isolar a ação mutante da imaginação poética no detalhe das variações das imagens é tarefa dura, posto que monótona.” Se o trabalho é monótono, o seu resultado passa longe disto. Lemos o texto com avidez, embora com uma certa dificuldade de manter o fio da meada: a todo momento somos levados pelo próprio autor para fora dele, para os devaneios de cada poeta citado, e daí para os nossos próprios... A tarefa dura consiste em retornar ao que está escrito. Por isto, evidencia-se uma certa semelhança do caráter do texto em questão com o próprio objeto de que trata: pois não somos levados ao devaneio?
Diante desta espécie de “poesia em segundo grau”, a questão elementar que nos inquieta é: será possível chegar lá onde se dá “a partida da imagem na consciência individual”? Ou estamos condenados à observação da exterioridade, se, como diz Jung: “O segredo do mistério criador, assim como o do livre arbítrio, é um problema transcendente e não compete à psicologia respondê-lo. Ela pode apenas descrevê-lo. Do mesmo modo, o homem criador também constitui um enigma, cuja solução pode ser proposta de várias maneiras, mas sempre em vão.”
O objetivo de Bachelard é, segundo suas palavras “... examinar imagens bem simples, as imagens do espaço feliz ... [e] determinar o valor humano dos espaços de posse, espaços proibidos a forças adversas, espaços amados” . Uma vez que o objetivo do fenomenólogo nada tem em comum com o do terapeuta, e na medida em que se limita à explicação da imagem no poema, perguntamo-nos se é possível determinar este valor que um poeta atribuiria a sua choupana ou a seu armário em termos que não sejam muito vagos.
Escolhemos para confrontar com a poesia de Cecília Meireles, além da introdução, os capítulos I, (A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana.) II, (Casa e universo) e IX (A dialética do exterior e do interior). Passemos ao texto.
Diz Bachelard: “Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem.” E prossegue:
Para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado, sob a condição, bem entendido, de tomarmos, ao mesmo tempo, a sua unidade e a sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental. A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens. Num e noutro caso, provaremos que a imaginação aumenta os valores da realidade.
É por isto que procuramos, em Cecília, não apenas casas completas e suas possíveis variações, como palácios e cabanas, mas também seus fragmentos: escadas, paredes, muros, portas, ainda que no poema não haja referência à casa enquanto unidade. Quanto a provar que a imaginação exagera a realidade, parece-nos tão evidente — não apenas na poesia! — que dispensa demonstração.
Não é a casa um tema recorrente em Cecília, mas eventual. Nem de longe comparece com a freqüência da nuvem, da estrela, do mar... É natural que nem todos os poetas necessitem da imagem da casa para “integrarem” sua visão de mundo. Porém, se, como quer o autor, é “feliz a criança que possui, realmente, as suas solidões” , talvez devêssemos esperar da poetisa um maior apego aos seus “espaços de solidão”, ela que se refere com tanto carinho à infância: “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida... Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu.” . Por outro lado, não seria mesmo de se esperar um grande apego à casa de quem inicia sua trajetória poética com uma “Viagem” , imagem diametralmente oposta, de desapego. Eis a primeira aparição, no poema “Conveniência”, de alguns elementos de uma casa:

(...) Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria...
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: “Que bom! nem é preciso respirar!...”

A idéia da morte, sutilmente sugerida neste poema tão onírico, coloca de saída o “espaço feliz” de Cecília fora do convencional, ou seja, no próprio túmulo, deslocando o eixo de nossa investigação. Em “Gargalhadas”, nova surpresa: o discurso agora é o da iconoclastia. A poetisa quer mesmo destruir o que há dentro da casa, em nome de uma alegria histérica:

É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,...


Onde pela primeira vez se faz menção nominal à casa é no poema “Noturno”:

(...) Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos. (...)

Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.

Meu quarto vazio só pensa que durmo...
Coitado de quem está sozinho
e assiste o seu próprio sonhar!

Enfim, aqui encontramos o espaço “revelador de um estado de alma”. Destacando-se pela alternância de versos de metro distinto e pela sensualidade intensa — rara em Cecília, mesmo neste primeiro livro onde suas tendências espiritualizantes ainda não estão solidamente definidas — o poema nos dá uma casa que participa fisicamente da dor e da saudade do sujeito. Estes versos finais remetem a outro poema, “A menina enferma”, onde se dá idêntica dissociação:

A menina enferma tem no seu quarto formas inúmeras
que inventam espantos para seus olhos sem ilusão. (...)

Um dia, ela descobriu sozinha que era duas!
a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite
e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,
balançada num céu de estrelas invisíveis,

sem contato nenhum com o chão.
Em “Província”, temos o coletivo da casa, a cidadezinha:
Que é das palmas que bateram
na noite das tuas portas?

Pela janela baixinha,
viam-se os círios acesos,
e as flores se desfolhavam
perto dos soluços presos...

Que é feito daquelas caras
escondendo o seu segredo?
Dos corredores escuros
com paredes só de medo?

As casas desta cidadezinha estão imersas “no inverno denso de bruma” bachelardiano, e também no passado perdido. Se há na cidade alguma lembrança feliz, não será dentro das casas, que tem “paredes só de medo”, atrás das quais as pessoas se escondem não das forças da natureza, mas do outro. Não é a casa “educadora”, pelo contrário: ela oculta a covardia.
Encontraremos outras casas em “Vaga música”. No poema “Retrato falante”, temos o objeto doméstico que adquire vida própria:

Não há quem não se espante, quando
mostro o retrato desta sala,
que o dia inteiro está mirando,
e à meia-noite em ponto fala. (...)

Este retrato falante é testemunha da luta do sujeito para manter intacto o seu espaço de solidão, a despeito das inúteis distrações da vida social. Mais que testemunha, aliás: ele substitui nesta vida o sujeito, que se confessa incapaz.

(...) Minha vida sempre foi cheia
de visitas inesperadas,
a quem eu me conservo alheia,
mas com as horas desperdiçadas. (...)

E eu, fatigada e distraída,
digo sim, digo não — diversas
respostas de gente perdida
no labirinto das conversas. (...)

Ao tomar da palavra, o retrato falante manifesta-se como entidade algo ambígua, que vigia mas também protege, é memória e anjo da guarda. Bachelard atribui uma destas funções às luzes da casa, vistas do exterior através das janelas, à semelhança de olhos: “Pela luz distante da casa, a casa vê, vigia, supervisiona, espreita.”

(...) “Depois que estejas morta, um dia,
tu, que és só desprezo e ternura,
saberás que ainda te vigia
meu olhar, nesta sala escura.

E em cada meia-noite em ponto,
direi o que viste e o que ouviste.
Que eu — mais que tu — conheço e aponto
quem e o que te deixou tão triste”.

Se, para Bachelard, “é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas” , o retrato participa plenamente desta função. Assim como o retrato, também a sombra pode falar, no ambiente um tanto enigmático do “Madrigal da sombra”

Sombra que passas, eu sei que és sombra,
eu sei que és sombra, sombra que falas.
Não deixas passo em nenhuma alfombra
das altas, graves, eternas salas.

Mas os que choram de sala em sala,
mirando espelhos, mirando alfombras,
choram teus passos e tua fala,
e o seu destino de amar as sombras.

Importante notar a maneira como o poema imita um espelho, na conformação das rimas com palavras repetidas (ABAB — BABA), que alternam singular e plural.
Já nos arriscamos, a esta altura, a dizer que, se a casa não é freqüentemente referida nos poemas de Cecília, de maneira direta e nominal, a sala, o quarto, a parede a evocam perfeitamente, tendo a sinédoque a vantagem da vagueza sugestiva, própria do simbolismo, já que quase sempre fica em aberto a localização destas misteriosas salas no universo da poetisa. Às vezes podem estar no fundo do mar, como em “Naufrágio antigo”:

(...) Desceu muitos degraus de seda
e atravessou muitas paredes
de vidro fresco. (...)

Os degraus fazem referência à dimensão indispensável na casa imaginária de Bachelard: “A casa é imaginada como um ser vertical”. Dimensão esta que “... é assegurada pela polaridade do porão e do sótão” .
Em “Mar absoluto”, faz referência à casa um poema apontado com interesse especial, por Leodegário de Azevedo Fº, pelo seu conteúdo expressionista, incomum na poetisa. É “Dia de chuva”:

As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela, (...)

Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...

Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e, com limo pela face,
ali ficasse batendo
— ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade (...)

Esse dia de chuva é o próprio espaço do devaneio. A porta, no poema, é uma via de comunicação direta entre a vida e a morte, entre este mundo e o outro. Ou, fechada, uma barreira, mas uma barreira frágil, que cotidianamente abrimos e fechamos. A porta para Bachelard está associada antes de mais nada a um desejo de abri-la: “origem de um devaneio onde se acumulam desejos e tentações, a tentação de abrir o ser no seu âmago, o desejo de conquistar todos os seres reticentes” . Não nos parece o caso desta porta, que não será aberta, não por medo do desconhecido, mas simplesmente por causa do ruído. A porta é também a própria imaginação poética, espécie de tímpano onde vêm bater os ecos do além, os fantasmas do passado.

(...) Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...

E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia,

Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.

Imagem semelhante à citada porta é a janela que aparece em uma das “Canções”, que não está em parede de casa nenhuma, mas destacada de tudo, ponte entre dois mundos:

Abriu-se a janela
que existia no ar.
Ninguém viu pousar
qualquer sombra nela. (...)

Pela madrugada,
desfez-se a janela.
Partiram, com ela,
as sombras do nada.

Em outra das “Canções”, a própria poetisa se encarrega de nos dar, de maneira definitiva, o endereço desta sua casa misteriosa e fragmentada:

Assim moro em meu sonho:
como um peixe no mar.
O que sou é o que vejo.
Vejo e sou meu olhar. (...)

E já não há mais casa, somente sonho, do tamanho do mar. Mas há casas mais concretas, na obra como na vida de Cecília, e no mesmo livro podemos ler um poema que parece referir-se mais diretamente à sua infância órfã:

Única sobrevivente
de uma casa desabada.
— só eu me achava acordada.

E recordo a minha gente,
na noite sem madrugada,
Só eu me achava acordada.

Minha morte é diferente:
eles não souberam nada.
Só eu me achava acordada.

Mas quem sabe o que se sente,
entre ir na casa afundada
e ter ficado, — acordada!?

Esta casa, obviamente, pode ser sua família precocemente desaparecida. E aqui, como de costume, a poetisa hesita entre os afetos terrenos e a indiferença. Por fim, a casa está presente no ímpar e delicioso “Ou isto ou aquilo”, aí sim, como o sonhado espaço do indivíduo, agora sonhado sem limites pela imaginação infantil. “O último andar” é também o último poema do livro:

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito mais longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem,
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.

Esta casa, porém, tem um sentido transcendente que é óbvio: ela se dirige para o alto, não para dentro de si mesma. Este último andar quase que já não é mais casa, é um limiar, antecâmara do próprio céu. Tudo aponta para a transcendência. Como diz Bachelard, pela primeira vez numa imagem quase idêntica: “A casa conquista sua parte de céu. Tem todo o céu como terraço.” O valor positivo da casa na poesia de Cecília está sempre ligado à idéia de liberdade. Como não poderia deixar de ser, o mesmo ocorre em “O aeronauta”.

II.
(...) Na minha fluida memória,
meu tempo não sabe de hora.
Apenas sabe
de grandes campos sem teto.
Nos céus tão vastos e abertos,
que é porta ou chave?

Que corredores me apertam?
De que paredes me cerca
vossa hospedagem?
Que existe por estas salas?
Meu nome agora é diverso.
Indeclinável.

V.
(...) Meu corpo de esquecimento
mede as torres de abundância,
livres e abertas,
de seus antigos despojos. (...)

VI.
Vede por onde passava
a minha sombra,
de tudo tão separada,
subida por uma escada
etérea e longa,
no céu desaparecida.

(...) Mas sento-me à vossa mesa,
pesada e presa,
por limite e densidade.

X.
(...) Por mais que aqui me equilibre,
e vos faça companhia,
tudo são queixas
de que me sentis tão livre
como alguém cuja morada
é além do dia. (...)

Basta que enumeremos alguns adjetivos encontrados nos trechos acima: fluida, vastos, abertos, indeclinável, livres, abertas, separada, etérea, longa, desaparecida e livre. E, a seguir, aqueles que se lhes opõem, por contraste: antigos, pesada e presa.
A mesma ênfase na liberdade aparece em um poema dos “Cânticos”, onde as únicas referências à idéia que rastreamos são, se não francamente negativas, um tanto herméticas, dentro do tom “espiritualizante” que perpassa este livro:

V.
Esse teu corpo é um fardo.
É uma grande montanha abafando-te.
Não te deixando sentir o vento livre
Do Infinito.
Quebra o teu corpo em cavernas
Para dentro de ti rugir
A força livre do ar.
Destrói mais essa prisão de pedra.
Faze-te recepo.
Âmbito.
Espaço.
Amplia-te.
Sê o grande sopro
Que circula...

Aqui o espaço interior da “caverna” só têm valor quando cheio de ar, de sopro, de som. Se não, é mera “prisão de pedra”.
Nos “Doze noturnos da Holanda”, bem como nos demais livros da poetisa inspirados nas viagens que fez, embora encontremos muitas vezes referências a casas e outras construções, são via de regra meramente descritivas da paisagem que a encanta, e raramente estão ali como símbolos. Aí aparecem em profusão as catedrais, mesquitas, templos, ruínas de cidades freqüentemente nomeadas e conhecidas.
Alguns dos “Poemas escritos na Índia”(1959), entretanto, merecem destaque não só pela sutileza das imagens atingida pela poetisa madura, ao retratar um país tão sonhado — que ela só chega a conhecer depois de fazer cincoenta anos — mas porque ultrapassam esse caráter documental. Em “Anoitecer”, por exemplo, a casa se humaniza, o que não é propriamente original:

(...) As cabanas são como pessoas muito antigas,
sentadas, pensando. (...)
Em se tratando, porém, da Índia, e da Índia aos olhos de Cecília Meireles, uma casa humanizada ainda é pouco. E ela então se espiritualiza (em “Aparecimento”):

A casa cheirava a especiarias
e o copeiro deslizava descalço,
levitava em silêncio,
— anjo da aurora entre paredes brancas.

Crepitava na mesa a manga verde
e a esbraseada pimenta.

O dono da casa era ao mesmo tempo
inatual como um rei antigo
e simples e próximo como um parente. (...)

Ia nascer amanhã uma criança.

E a casa, no meio do campo,
estendia mil braços ternos e graves
para o céu, para o rio, para o vento,
para o país dos nascimentos,
à espera dessa criança
nua e pequenina,
que apareceria de olhos fechados
com um breve grito:

já sua alma.

E subiam para Deus fios de incenso, azuis.

Esta casa é mãe, e ao mesmo tempo é berço. Anseia pela criança que está para chegar, e é um espírito protetor em diálogo com os elementos da natureza. Como diz Bachelard: “A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa.” Podemos agora dizer que encontramos não apenas “uma imensa casa cósmica [que] existe potencialmente em todo sonho sobre casa. Uma casa tão dinâmica permite ao poeta habitar o universo. Ou, dito de outra maneira, o universo vem habitar sua casa” . Assim no poema “Loja do Astrólogo”:

Era astrólogo ou simples poeta?
Era o vidente do ar.
Tinha uma loja azul-cobalto,
claro céu dentro do bazar.
Teto e paredes só de estrelas:
e a lua no melhor lugar. (...)

Diz mais Bachelard sobre esta casa cósmica: “Estranha situação, os espaços amados não querem ficar fechados! Eles se soltam. Diríamos que se transportam, facilmente, aliás, para outros tempos, para outros planos diferentes dos sonhos e das lembranças.” E prossegue: “Essa casa é uma espécie de casa leve que se desloca, para mim, nos sopros do tempo. Está realmente aberta ao vento de outro tempo. Diríamos que nos pode acolher em todas as manhãs de nossa vida para nos dar confiança na própria vida.”
Encontramos no mesmo livro outra confissão da poetisa, significativamente colocada entre parênteses, desta vez indicando aquele que deveria ser seu endereço. O poema é “Jaipur”:

Adeus, Jaipur,
adeus, casas cor-de-rosa com ramos brancos,
pórticos, peixes azuis nos arcos de entrada. (...)

Adeus, sacerdote de candeia fumosa,
tantas luzes por tantos bicos,
e os gongos e os sinos e a porta de prata
e a Deusa antiga,
e a existência fora do tempo.

Adeus, pinturas, corredores, mirantes,
muralhas, escadas de castelo, mendigos lá em baixo,
criancinhas que pedem esmola como quem canta. (...)

Adeus, astrólogo.
Muitos adeuses sobre o Palácio do Vento
(Onde eu devia morar!) (...)

Mas há ainda dois outros poemas que gostaríamos de destacar. O primeiro é “Chuva no palácio dos Doges”, de “Poemas italianos”:

Como subir a grande escada,
se a chuva cai soberbamente,
toda em cascata derramada?

se a luz foge das galerias,
e um largo vento sopra e envolve
colunas e esculturas frias?

(Perderam-se os passos pelas vastas
salas de festas e de angústias,
dos gestos vãos, das cenas gastas... (...)

Estremece a antiga vidraça
— pássaro de cristal ferido
pelo vento que em frechas passa. (...)

entre santos, papas, guerreiros,
que em tetos e paredes de ouro
se movem, quase verdadeiros.

Perde-se a vida, nas escuras
prisões de portas poderosas
com sobras de mortas criaturas.

Perde-se a alma, nestes lugares,
com o passado erguido nos muros,
e os deuses visíveis, nos ares. (...)

E como descer esta escada?
Como ser mortal, novamente
e aceitar o mundo sem nada?

Como estar vivo, entre estes ventos,
sob esta chuva — desvairado
pelo eco destes aposentos?

É o palácio, neste poema, que detona na poetisa a poderosa máquina de imagens de um passado extinto e no entanto tão vivo que chega a ser perigoso: ali “perde-se a alma”. Todos os elementos arquitetônicos estão ali para sugerir a existência de fantasmas, todas as obras de arte testemunham um passado de glória tão presente que chega a ser esmagador: “Como estar vivo”?
Concluimos com uma obra-prima que faz parte dos “Poemas de Viagens”, escrita em 1960. Neste poema, a atmosfera onírica lembra os “Doze noturnos da Holanda”, porém há aqui o reforço de um ritmo regular (ausente naqueles) a ponto de ser hipnótico. Inicia com versos bitetrassílabos, passando no quinto verso ao bipentassílabo. Por meio de enumerações, a poetisa compõe um grande painel noturno, cuja unidade é amarrada pela freqüente referência aos elementos da casa (e da cidade), com ênfase especial para aquela porta bachelardiana, “bem fechada, aferrolhada, fechada com cadeado” , atrás da qual algo de impossível se esconde. Todas estas referências a elementos cotidianos da cidade retratada não são capazes de exorcizar o clima de angústia e completa suspensão da realidade obtido pelo ritmo e a repetição constante de aflitivas perguntas sem resposta. Resposta, evidentemente, temida acima de tudo. Embora o poema seja longo, achamos justo transcrevê-lo na íntegra. Eis a “Bela cidade de prata, pálida”:

Bela cidade de prata, pálida,
toda de triângulos, esguia, cônica,
bela cidade que o rio enlaça,
que a lua vela, que o álamo embala,
cidade fechada, cidade calada
como um castelo, quem é que passa,
tarde da noite, pelo silêncio,
com a sombra nas plantas, com a sombra nos muros,
com a sombra nas portas e pelas vidraças?

Quem é que pára à margem do rio,
para ouvir o som das águas noturnas,
breves, suspirando, frias, entre as ervas,
por baixo das pontes, perdendo-se em negro,
achando-se em luz, segredosa e viva,
ainda acordada na noite redonda,
na noite da lua, do álamo e das casas,
com tantos ferrolhos, ferrolhos e trancas,
fechaduras, chaves, correntes, cadeados...?

Quem é que atravessa jardins, alamedas,
hortas e pomares, e pontes e pátios,
quem sobe as escadas, quem sai pelos tetos,
quem fala, quem canta, quem leva nos braços
amadas e mortos? quem chora, quem dança,
quem diz as palavras que não têm sentido?

Que abraços são esses? que olhares? que fatos
acontecem, fluidos, entre a lua e a terra,
entre a lua e o sol, entre o sol e o tempo,
como se a cidade estivesse aberta,
e homens e mulheres, todos acordados,
com mortos que vivem, com vivos que morrem,
assuntos que apenas são sempre impossíveis,
que é tudo impalpável, por dentro de pálpebras,
dentro de paredes de pedras espessas,
de portas fechadas, de janelas duplas,
com muitos ferrolhos, com trancas e chaves,
com o álamo atento, a lua de ronda,
a líquida cerca do rio correndo,
a noite igualmente diáfana e compacta,
a noite dos homens, a noite da terra,
a noite da vida tão grande, suspensa
no vago planeta incomunicável
suspenso entre abismos, plantado de enigmas,
nascimentos, mortes, e sonhos dormidos,
sonhos acordados, de estranhos motivos.

Tendo em vista a posição especial que ocupam dentro da obra de Cecília Meireles, pelo caráter épico de um e algo hermético do outro, e também para não estender em demasia este trabalho, deixamos de examinar aqui o “Romanceiro da Inconfidência” e “Solombra”. Assim os “Doze noturnos de Holanda”, onde as referências eventuais à imagem da casa são meramente descritivas.
Acreditamos ter encontrado, no pensamento de Bachelard, uma ferramenta bastante apropriada para penetrar no universo da poesia de Cecília Meireles, ainda que — como advertimos no princípio do ensaio —não tenhamos tratado de elementos-chave ou predominantes em sua obra. Não há dúvida de que a imagem da casa não é “um dos maiores poderes de integração dos pensamentos” da poetisa. Mesmo assim pudemos, efetivamente, determinar aquele “valor humano dos espaços de posse”, em termos porém restritos à subjetividade da autora — lá onde se dá “a partida da imagem na consciência individual” — valor muitas vezes negativo ou ambivalente, como é possível ver nos exemplos acima.

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO Fº, Leodegário Amarante de, Poesia e estilo de Cecília Meireles. José Olympio, Rio de Janeiro, 1970.
BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico; A poética do espaço. 3ª ed. Nova Cultural, São Paulo, 1988. (Os Pensadores)
JUNG, Carl Gustav. “Psicologia e Poesia”. In: O espírito na arte e na ciência. Vozes, Petrópolis, 1985.
MEIRELES, Cecília. Canções. Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1956.
—. Cânticos. 2ª ed. Moderna, São Paulo, 1982.
—. Mar Absoluto. Globo, Porto Alegre, 1945.
—. Ou isto ou aquilo. 4ª ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.
—. Poesias completas. 2ª ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976. vol. 3.
—. Poesias completas. Civilização Brasileira/INL, RiodeJaneiro, 1974. vol. 9.
—. Viagem/Vaga Música. 2ª ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982.


00/00/1999

 

 


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